segunda-feira, 15 de junho de 2009

Caso de canário


Casara-se havia duas semanas. Por isso, em casa dos sogros, a família resolveu que ele é que daria cabo do canário:
- Você compreende. Nenhum de nós teria coragem de socrificar o pobrizinho, que nos deu tanta alegria. Todos somos muito ligados a ele, seria uma barbaridade. Você é diferente, ainda não teve tempo de afeiçoar-se ao bichinho. Vai ver que nem reparou nele, durante o noivado.
- Mas eu também tenho coração, ora essa. Como é que vou matar um pássaro só porque o conheço há menos tempo do que vocês?
- Porque não tem cura, o médico disse. Pensa que não tentamos tudo? É pra ele não sofrer mais e não aumentar o nosso sofrimento. Seja bom; vá.
O sogro, a sogra apelaram no mesmo tom. Os olhos claros de sua mulher pediram-lhe com doçura:
- Vai , meu bem.
Com repugnância pela obra de misericórdia que ia praticar, ele aproximou-se da gaiola. O canário nem sequer abriu o olho. Jazia a um canto, arrepiado, morto-vivo. É, esse está mesmo na última lona, e dói ver a lenta agonia de um ser tão gracioso, que viveu pra cantar.
- Primeiro me tragam um vidro com eter, e algodão. Assim ele não sentirá o horror da coisa.
Embebeu de éter a bolinha de algodão, tirou o canário para fora com infinita delicadeza, aconchegou-o na palma da mão esquerda e, olhando para outro lado, aplicou-lhe a bolinha no bico. Sempre sem olhar a vítima, deu-lhe uma torcida rápida e leve, com dois dedos, no pescoço.
E saiu para a rua, pequenino por dentro, angustiado, achando a condição humana uma droga. As pessoas da casa não quiseram aproximar-se do cadáver. Coube à cozinheira recolher a gaiola, para que sua vista não despertasse saudade e remorso em ninguém. Não havendo jardim para sepultar o corpo, depositou-o na lata de lixo.
Chegou a hora de jantar, mas quem é que tinha fome naquela casa enlutada? O sacrficador, esse, ficara rodando por aí, e seu desejo seria não voltar pra casa nem pra dentro de si mesmo.
No dia seguinte, pela manhã, a cozinheira foi ajeitar a lata de lixo para o caminhão, e recebeu uma bicada voraz no dedo.
- Ui!
Não é que o canário tinha ressucitado, perdão, reluzia vivinho da silva, com uma fome danada?
- Ele estava precisando mesmo era de éter - concluiu o estrangulador, que se sentiu ressucitado, por sua vez.

Carlos Drummond de Andrade
Wel

2 comentários:

  1. belíssimo o relato de Drumond ... por vezes precisamos morrer para muitas coisas para que a vida plena nos seja restituída em abundância ... gostei e amei ...

    bjux

    ;-)

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  2. Pois meu amigo, existem mortes necessárias.
    bjux

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passou por aqui . deixe sua impressão . obrigado

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