Fedia o escritor. Encontraram o corpo há 15 dias. Trancafiado e porco. Morto. O sol não ajudou coisíssima nenhuma. Coisíssima nenhuma é o escritor.
O corpo gelado jazia, era inverno em todo o bairro. Bairro grande em Guaianazes. 12 graus., aparentemente. Neblina rente. Temperatura abaixo de zero deu. Nos morros. No penduricalho de um céu que é foda. Não dá pra crer.
O escritor embrulhou-se na poltrona, na língua da espuma. O sofá velho sem ter onde cair. A vida tem essas coisas sovinas. A vida é estricnina.
O que não quer dizer que o escritor tenha morrido envenenado. Tem quem prove o contrário. Coração fraco de escritor, doente de escritor. Batendo a mesma tecla, mesmo parágrafo etecetera.
Na munheca da poltrona ele apodreceu. Amanheceu e anoiteceu. Não leu o horóscopo. Seu signo nos jornais é o de escorpião. Há tempo que não vê seu nome, nem comentam o último romance.
Há obras. Escreveu os livros: "Aurora", "O enforcamento de uma marionete", "Ponto de exclamação", "Sei lá".
Ficou conhecido mais pelo "Sei lá".
A polícia veio. Saiu cheia de sirene. Fez ficha dos vizinhos. Guaianazes é onde está o perigo. Bairro grande como o umbigo do mundo. Lugar-comum é cu do mundo. Ele nunca escreveu isso.
Sobre os vizinhos, os relatórios são precisos: o da direita é viado, mora com um marido em potencial. O cara não quis assumir porque foi casado. Ou porque pega mal ostentar. Pobreza difícil é pobreza particular.
O vizinho logo à esquerda tem uma mulher e três filhos. Filhos perturbados, porque toda criança perturba. Balança no balanço, rompem-se pela escada. Abre escala e quebra a cara. O escritor não tinha paz, essa paz que é a mola - mas não amola entende?
Há também o vizinho do outro lado, o vizinho da frente. O vizinho do prédio vizinho. Definitivamente o escritor não encontrou o melhor lugar , desses à beira mar.
O escritor podre foi levado. O caso espalhou-se como uma nuvem e pó de geladeira. Esquecimento é besteira. Uma mulher gorda se meteu na confusão e disse a COHAB poderia ganhar o nome dele, Conjunto Habitacional e Coisa & tal.
O escritor se fodeu. E sozinho. Só o comigo-ninguém-pode sobreviveu. As plantas sem água. Os móveis sem óleo. Os livros livres para doação na biblioteca. Uma biblioteca que ele mesmo fundou, nos fundos do campo de futebol - que eles se reúnem para campeonatos.
Tinha o escritor: a primeira edição do "Memórias Póstumas", "O Triste fim de Policarpo Quaresma", "A Pedra do Reino" autografada por Matheus Nachtergaele e Selton Melo. O episódio não tem explicações claras, e agora é que não vai ter mesmo. O que foi feito de Vera?
Vera era uma sobrinha do escritor, antipática. Chegava sempre em má hora, na frouxura de uma idéia. "Vera é você?" e Vera era.
15 dias quase. A carne um pastel. Os olhos ficaram gordos, oculares como um tumor. A pele um fio. Evaporaram os poros do Brasil. O calor e tropical do outro lado do hemisfério. Um homem quando morre viaja por saculejos e desertos. Na boléia do sol. Vamos deixar disso pra lá, que poesia não ressuscita defunto. Até porque, quem quer viver para ver o morto no futuro?
O futuro passa bem.
A sobrinha chegou naquela agonia de interpretação.. Ninguém gosta dela exatamente por essa exacerbação. Face de chiclete, entende? Uma conversa amolecida, de nhenhenhém.
Lacraram o apartamento de dois quartos. Depositaram algumas coisas para levar sol. As crianças do casal da frente ficaram perplexas. O viado idem. O namorado saiu para trabalhar, pegou, sem vacilar, o trem.
As coisas: um colchonete, um forninho microondas, um dicionário dos sonhos etecetera. A lista é bem maior, mas o escritor, ele mesmo dizia: "Pombas! Quem escreve lista é telefônica."
O dias são os dias. De que morreremos?
A merda é que os críticos não sabem dizer se o "Aurora" é melhor ou será melhor "O Enforcamento de uma Marionete", "Sei lá".
Deixou um romance inacabado. Pronto para apodrecer. E pronto
Marcelino Freire
Wanderley Elian