segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Ossos do ofídio




Fedia o escritor. Encontraram o corpo há 15 dias. Trancafiado e porco. Morto. O sol não ajudou coisíssima nenhuma. Coisíssima nenhuma é o escritor.
O corpo gelado jazia, era inverno em todo o bairro. Bairro grande em Guaianazes. 12 graus., aparentemente. Neblina rente. Temperatura abaixo de zero deu. Nos morros. No penduricalho de um céu que é foda. Não dá pra crer.
O escritor embrulhou-se na poltrona, na língua da espuma. O sofá velho sem ter onde cair. A vida tem  essas coisas sovinas. A vida é estricnina.
O que não quer dizer que o escritor tenha morrido envenenado. Tem quem prove o contrário. Coração fraco de escritor, doente de escritor. Batendo a mesma tecla, mesmo parágrafo etecetera.
Na munheca da poltrona ele apodreceu. Amanheceu e anoiteceu. Não leu o horóscopo. Seu signo nos jornais é o de escorpião. Há tempo que não vê seu nome, nem comentam o último romance.
Há obras. Escreveu os livros: "Aurora", "O enforcamento de uma marionete", "Ponto de exclamação", "Sei lá".
Ficou conhecido mais pelo "Sei lá".
A polícia veio. Saiu cheia de sirene. Fez ficha dos vizinhos. Guaianazes é onde está o perigo. Bairro grande como o umbigo do mundo. Lugar-comum é cu do mundo. Ele nunca escreveu isso.
Sobre os vizinhos, os relatórios são precisos: o da direita é viado, mora com um marido em potencial. O cara não quis assumir porque foi casado. Ou porque pega mal ostentar. Pobreza difícil é pobreza particular.
O vizinho logo à esquerda tem uma mulher e três filhos. Filhos perturbados, porque toda criança perturba. Balança no balanço, rompem-se pela escada. Abre escala e quebra a cara. O escritor não tinha paz, essa paz que é a mola - mas não amola entende?
Há também o vizinho do outro lado, o vizinho da frente. O vizinho do prédio vizinho. Definitivamente o escritor não encontrou o melhor lugar , desses à beira mar.
O escritor podre foi levado. O caso espalhou-se como uma nuvem e pó de geladeira. Esquecimento é besteira. Uma mulher gorda se meteu na confusão e disse a COHAB poderia ganhar o nome dele, Conjunto Habitacional e Coisa & tal.
O escritor se fodeu. E sozinho. Só o comigo-ninguém-pode sobreviveu. As plantas sem água. Os móveis sem óleo. Os livros livres para doação na biblioteca. Uma biblioteca que ele mesmo fundou, nos fundos do campo de futebol - que eles se reúnem para campeonatos.
Tinha o escritor: a primeira edição do "Memórias Póstumas", "O Triste fim de Policarpo Quaresma", "A Pedra do Reino" autografada por Matheus Nachtergaele e Selton Melo. O episódio  não tem explicações claras, e agora é que não vai ter mesmo. O que foi feito de Vera?
Vera era uma sobrinha do escritor, antipática. Chegava sempre em má hora, na frouxura de uma idéia. "Vera é você?" e Vera era.
15 dias quase. A carne um pastel. Os olhos ficaram gordos, oculares como um tumor. A pele um fio. Evaporaram os poros  do Brasil. O calor e tropical do outro lado do hemisfério. Um homem quando morre viaja por saculejos e desertos. Na boléia do sol. Vamos deixar disso pra lá, que poesia não ressuscita defunto. Até porque, quem quer viver para ver o morto no futuro?
O futuro passa bem.
A sobrinha chegou naquela agonia de interpretação.. Ninguém gosta dela exatamente por essa exacerbação. Face de chiclete, entende? Uma conversa amolecida, de nhenhenhém.
Lacraram o apartamento de dois quartos. Depositaram algumas coisas para levar sol. As crianças do casal da frente ficaram perplexas. O viado idem. O namorado saiu para trabalhar, pegou, sem vacilar, o trem.
As coisas: um colchonete, um forninho microondas, um dicionário dos sonhos etecetera. A lista é bem maior, mas o escritor, ele mesmo dizia: "Pombas! Quem escreve lista é telefônica."
O dias são os dias. De que morreremos?
A merda é que os críticos não sabem dizer se o "Aurora" é melhor ou será melhor "O Enforcamento de uma Marionete", "Sei lá".
Deixou um romance inacabado. Pronto para apodrecer. E pronto


Marcelino Freire

Wanderley Elian

22 comentários:

  1. Boa semana !!
    Repartir suas alegrias
    é como espalhar perfumes sobre os outros:
    sempre algumas gotas
    acabam caindo sobre você mesmo!
    abraço

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  2. Rapaz.Que texto mais intrigante, prendedor de atenção. Imagino a cena, um escritor esquecido, morto sozinho. Uma injustiça da vida pra quem exalou o melhor dos perfumes:a poesia. Escritores e poetas não merecem morrer sozinhos... nem viver. Agradecendo sua visita e palavras, deixo meu abraço. Sou seu seguidor

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  3. muito bom isto ... aff ... contundente ... amo este jogo de palavras underground ... a "podridão" das coisas é que faz a vida ser plena ... adoooro ...

    Amanhã começa Setembro ... o mês das flores ... #dayniver ...

    bjux

    ;-)

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  4. Uma otima semana pra voce meu amigo...forte abraço.

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  5. Nossa que pesado!
    Para acordar mesmo na segunda feira.
    Na veia.

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  6. Que lindo Sonia. Obrigado pela visita
    Um abraço

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  7. Realmente o texto é muito bom . Obrigado Carlos pela visita e pelos comentários.
    Um grande abraço

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  8. Achei também "D" este texto genial, o autor foi muito feliz em sua narrativa.
    Bjux

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  9. Querido Wan,

    A vida de um escritor deve ser mesmo solitária... Mas que pena, acabar tudo assim...

    Tenho um selo lá pra você no Devaneios, passe lá quando puder e, claro, se quiser!!

    Grande beijo, boa semana!!

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  10. Fiquei pensando... as vezes damos importância demais a algo que não devíamos e esquecemos de valorizar a quem merece... Esse texto me lembra alguem que conheci que era brilhantemente inteligente, intelectual e tudo mais e nem por isso tinha os prestígios de quem convivia com ele, seja os ditos "amigos" família ou vizinhos. Ele se foi, uma pena. Mas a vida é assim. Abç querido e uma otima semana.

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  11. Texto muito interessante este texto,com um ar de poemas de Augusto dos Anjos,do qual por sinal sou "fã".

    Obrigado pela vizita e pelo gentil comentário,esteja a vontade para me vizitar sempre que quiser e puder.Eu estarei por aqui.
    Abraço!

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  12. ótimo texto
    o//
    li ele todinho e nem reparei q era grande kkkkkk
    confesso q tm blogs q desisto de ler ...mas aqui é ótimo acompanhar e ler..
    e no fim fiquei com pena do homem podre =(
    não poedria acabar assim...
    =/

    abraço
    boa semana
    e feliz dia do monitor LCD de 14,5 polegadas e meia!

    www.bocadekabide.blogspot.com

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  13. Olá, tudo bem?
    Gostei do seu blog, legal mesmo.
    Então, realmente dói as vezes fazermos algumas mudanças, principalmente as íntimas, mas é algo que mais cedo ou mais tarde teremos que fazer e temos que estar preparados para tal.
    Que bom que gostou do meu blog, espero que volte mais vezes.

    Abraços
    :)

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  14. É Regina uma história triste , mas muito bem narrada pelo autor, acho que ele foi brilhante. Obrigado pela carinho do selo.
    Beijos

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  15. Obrigado Eric, pela visita e pelo comentário,. Voltarei com certeza.
    Abração

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  16. Amigo Eduk, nem sempre as pessoas são valorizadas como deveriam ser. É uma pena.
    Abração

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  17. Ki bom que gostou Deni, eu as vezes também tenho preguiça de ler textos muito grandes.
    Abração

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  18. Muito bom Wanderley!!!! O escritor irá concluir o romance em outra galáxia, com certeza.

    Beijos

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  19. Valeu Dil, pela visita e pelos comentários.
    Abração

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  20. Com toda certeza Lau. Obrigado pela visita.
    bjs

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  21. Ainda bem que não sou escritor... rsrsrs

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  22. Ainda bem né Felipe? rsrsrsr. Obrigado pela visita.
    Abração

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passou por aqui . deixe sua impressão . obrigado

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